domingo, 13 de janeiro de 2008

Como eu queria que estivesse aqui


Como eu queria que estivesse aqui
(wish you were here)



Então, você acha que pode diferenciar
Paraíso de inferno?
Céu azul de dor?
Você pode diferenciar um campo verde
De um trilho de aço frio,
Um sorriso de um véu?
Você acha que pode diferenciar?

Eles convenceram você a trocar
Seus heróis por fantasmas?
Cinzas quentes por árvores?
Ar quente por uma brisa fresca?
Conforto frio por mudança?
Você trocou um papel de coadjuvante em uma guerra
Por um papel principal em uma cela?

Como eu queria, que você estivesse aqui.

Nós somos apenas duas almas
Perdidas nadando em um aquário
Ano após ano
Correndo sobre os mesmos campos,
O que nós encontramos?
Os mesmos medos

Como eu queria, que você estivesse aqui.

Nós somos apenas duas almas
Perdidas nadando em um aquário
Ano após ano
Correndo sobre os mesmos campos,
O que nós encontramos?
Os mesmos medos

Como eu queria, que estivesse aqui.

Mas Viveremos


Mas Viveremos

Já não há mãos dadas no mundo
Elas agora viajarão sozinhas
Sem o fogo dos velhos contatos,
Que ardia por dentro e dava coragem

Desfeito o abraço que me permitia
Homem da roça, percorrer a estepe,
Sentir o negro, dormir a teu lado,
Irmãos, chinês, mexicano ou báltico.

Já não olharei sobre o oceano
(Trabalhadores, uni-vos...) a mensagem,
Que ensinava a esperar, a combater,
A calar, desprezar e ter amor.

Há mais de vinte anos caminhávamos
Sem vermos, de longe, disfarçados,
Mas a um grito, no escuro, respondia,
Outro grito, outro homem, outra certeza.

Muitas vezes julgávamos ver a aurora
E sua rosa de fogo à nossa frente.
Era apenas na noite, uma fogueira,
Voltava à noite, mais noite, mais completa.

E que dificuldade de falar!
Nem palavras, nem códigos, apenas
Montanhas e montanhas e montanhas
Oceanos, oceanos e oceanos.

Mas um livro por baixo do colchão,
Era súbito um beijo, uma carícia,
Uma paz sobre o corpo se alastrando,
E teu retrato, um amigo, consolava.

Pois às vezes nem isso. Nada tínhamos
A não ser estas chagas pelas pernas,
Este frio, esta ilha, este presídio,
Este insulto, este cuspo, esta confiança.

No mar estava escrita uma cidade
No campo ela crescia, na lagoa,
No pátio negro, em tudo onde pisasse,
Alguém se desenhava tua imagem.

Teu brilho, tuas pontas, teu império
E teu sangue e teu bafo e tua pálpebra,
Estrela: cada um te possuía.
Era inútil queimar-te, cintilavas.

Hoje quedamos sós. Em toda parte,
Somos muito e sós. Eu, como os outros.
Já não sei vossos nomes nem vos olho
Na boca, onde a palavra se calou.

Voltamos a viver na solidão,
Temos de agir na linha do gasômetro
Do bar, na nossa rua: prisioneiros
De uma cidade estreita e sem ventanas.

Mas viveremos. A dor foi esquecida
Nos combates de rua, entre destroços.
Toda melancolia dissipou-se
Em sol, em sangue, em vozes de protesto.

Já não cultivamos amargura
Nem sabemos sofrer. Já dominamos
Essa matéria escura. Já nos vemos
Em plena força de homens libertados.

Pouco importa que dedos desliguem
E não se escrevam cartas nem façam
Sinais na praia ao rubro couraçado.
Ele chegará, ele viaja o mundo.

E ganhará enfim todos os pontos,
Avião sem bombas entre Natal e China,
Petróleo, flores, crianças estudando,
Beijo de moça, trigo e sol nascendo.

Ele caminhará nas avenidas,
Entrará nas casas, abolirá os mortos,
Ele viajará sempre, esse navio
Essa rosa, esse canto, essa palavra.



Carlos Drumond de Andrade

poeta