domingo, 14 de março de 2010

Ponto final...


Ponto final...

Há vinte anos, eu ganhava a vida como motorista de táxi.
Era uma vida ótima, própria para alguém que não desejava ter patrão.
O que eu não percebi, é que aquela vida era também um ministério.
Em face de eu dirigir no turno da noite, meu táxi tornou-se,
muitas vezes, um confessionário.
Os passageiros embarcavam e sentavam atrás, totalmente anônimos,
e contavam episódios de suas vidas: suas alegrias e suas tristezas.
Encontrei pessoas cujas vidas surpreenderam-me, enobreceram-me,
fizeram-me rir e chorar.
Mas nenhuma me tocou mais do que a de uma velhinha que eu peguei
tarde da noite:
Estávamos em agosto. eu havia recebido uma chamada de um pequeno
prédio de tijolos, de quatro andares, em uma rua tranqüila de
um subúrbio da cidade.
Eu imaginara que iria pegar pessoas num fim de festa, ou alguém que
brigara com o amante, ou talvez um trabalhador indo para um turno da
madrugada de alguma fábrica da parte industrial da cidade.
Quando eu cheguei às 02:30 da madrugada, o prédio estava escuro,
com exceção de uma única lâmpada acesa numa janela do andar térreo.
Nessas circunstâncias, muitos motoristas teriam buzinado duas ou
três vezes, esperariam um minuto, então iriam embora.
Mas eu tinha visto inúmeras pessoas pobres que dependiam de táxis,
como o único meio de transporte a tal hora.
A não ser que a situação fosse claramente perigosa, eu sempre
ia até a porta.

\"Este passageiro pode ser alguém que necessita de ajuda\"
- eu pensei.
Assim fui até a porta e bati.

\"Um minuto!\" - respondeu uma voz débil e idosa.

Eu ouvi alguma coisa ser arrastada pelo chão.

Depois de uma pausa longa, a porta se abriu.

Uma octogenária, pequenina, apareceu.

Usava um vestido estampado e um chapéu bizarro que mais parecia
uma caixa com véu, daqueles usados pelas senhoras idosas nos filmes
da década de 40.

Ao seu lado havia uma pequena valise de nylon.

O apartamento parecia estar desabitado há muito tempo.

Toda a mobília estava coberta por lençóis.

Não havia relógios, roupas ou utensílios sobre os móveis.

Num canto jazia uma caixa com fotografias e vidros.

\"O Sr. poderia colocar a minha mala no carro?\" - ela me pediu.

Eu peguei a mala e caminhei vagarosamente para o meio-fio, e ela
ficou agradecendo minha ajuda.

\"Não é nada. Eu apenas procuro tratar meus passageiros da melhor
forma possível.\" - disse-me.

\"Oh!, você é um bom rapaz!\" - disse-me ela, sorrindo.

Quando embarcamos, ela me deu o endereço e pediu-me:

\"O Sr. poderia ir pelo centro da cidade?\"

\"Não é o trajeto mais curto...\" - alertei-a prontamente.

\"Eu não me importo. Não estou com pressa, pois meu destino
é um asilo de velhos.\"

Eu olhei pelo retrovisor.

Os olhos da velhinha estavam marejados, brilhando.

\"Eu não tenho mais família...\"
\"Meu médico diz que tenho pouco tempo...\"

Eu, disfarçadamente, desliguei o taxímetro e perguntei:

\"Qual o caminho que a Sra. deseja que eu tome?\"

Nas duas horas seguintes, nós rodamos pela cidade.

Ela me mostrou o edifício que havia, em certa ocasião, trabalhado
como ascensorista.

Nós passamos pelas cercanias em que ela e o marido tinham vivido
como recém-casados.

Ela me pediu que passasse em frente a um depósito de móveis, que havia
sido um grande salão de dança que ela freqüentara quando mocinha.
De vez em quando, pedia-me para dirigir vagarosamente em frente
à um edifício ou esquina.
Ficava, então, com os olhos fixos na escuridão, sem dizer nada.

Quando o primeiro raio de sol surgiu no horizonte, ela disse, de repente:

\"Eu estou cansada. Vamos agora?\"

Viajamos, então, em silêncio, para o endereço que ela havia me dado.

Chegamos a um prédio baixo, lúgubre, como uma pequena casa de repouso.

A via de entrada passava sob um pórtico.

Dois atendentes caminharam até o táxi, assim que ele parou.

Eram muito amáveis e atenciosos, e observavam todos os movimentos dela.

Eles a deviam estar esperando.

Eu abri o porta-malas do carro e levei a pequena valise para a porta.

A senhora, já sentada em uma cadeira de rodas, perguntou-me :

\"Quanto lhe devo?\" - e já foi abrindo a bolsa para pagar.

\"Nada\" - respondi.

\"Você tem que ganhar a vida, meu jovem...\"

\"Há outros passageiros\" - respondi.

Quase sem pensar, eu curvei-me e dei-lhe um abraço.

Ela me envolveu comovidamente.

\"Você deu a esta velhinha bons momentos de alegria. Obrigada!\"

\"Eu que agradeço.\" - respondi.

Apertei sua mão e caminhei no lusco-fusco da alvorada.

Atrás de mim uma porta foi fechada.

Era o som do término de uma vida.

Naquele dia não peguei mais passageiros.

Dirigi sem rumo, perdido nos meus pensamentos.

Mal podia respirar de emoção...

Fiquei pensando se a velhinha tivesse pegado um motorista mal-educado
e raivoso, ou algum que estivesse ansioso para terminar seu turno?

E se houvesse recusado a corrida, ou tivesse buzinado uma vez
e ido embora?

Ao relembrar, não creio que eu jamais tenha feito algo
mais importante na minha vida.


A maioria das pessoas está condicionada a pensar que suas vidas
giram em torno de grandes momentos. Todavia, os grandes momentos freqüentemente
nos pegam desprevenidos, e ficam maravilhosamente guardados em recantos que
os outros podem considerar sem importância.

As pessoas podem não lembrar exatamente o que você fez, ou o que você disse.
Mas elas sempre lembrarão como você as fez sentir.

Pense nisso!

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