sábado, 5 de abril de 2008

Mitologias: o trânsito


Mitologias: o trânsito
por Daniel Piza, Seção: política, comportamento s 10:36:55.
O trânsito em São Paulo já não é há muito tempo uma coisa folclórica ("São Paulo não pode parar porque não tem onde estacionar") nem um dos muitos problemas da cidade (que continua a multiplicá-los) nem tampouco exclusivo de abonados que têm carro. Ele se tornou um definidor cultural, um denominador comum, um sinal do cada vez pior estado de espírito da cidade. São Paulo pode ser capital de muitas coisas - da cultura, da gastronomia, das oportunidades profissionais, etc. -, mas é acima de tudo a capital do trânsito. Cada vez mais é feliz nesta cidade quem sofre menos com os congestionamentos: quem leva menos de meia hora para ir e voltar do trabalho, quem não precisa circular durante o rush - o qual nos anos 80 era das 8h às 8h30 e das 18h às 18h30 e agora se expandiu para das 7h às 10h e das 17h às 20h, se não estou sendo otimista.

Não espanta que, nos cálculos do urbanista Cândido Malta, seria necessário construir oito avenidas Faria Lima por ano para que a coisa não piorasse. "São Paulo vai parar", diz ele. Já parou! O que não pára é o aumento do estresse do cidadão, que todo dia vê nas ruas ou lê nos jornais sobre brigas e desastres no trânsito. Quase todo mundo está igual a Michael Douglas naquele filme Um Dia de Fúria. Um gesto de gentileza motorizada é raro como flor no asfalto. Especialistas vêm com uma série de soluções, na maioria sabidas (quadruplicar o metrô, em destaque), outras controversas (pedágio urbano para dar mais dinheiro para uma Prefeitura que não faz sua parte?). Seja como for, o "pedágio urbano" já é alto e cobrado todos os dias.

Não vou entrar no mérito das sugestões, mas não posso deixar de notar a ironia de algumas já exercidas. O rodízio, por exemplo. É certo que sem ele as coisas estariam piores, mas com ele continuam piorando. Isso porque não se tem transporte coletivo de qualidade, a engenharia de tráfego é burra e os nobres e preocupados cidadãos preferem comprar mais um carro (nunca antes neste país se venderam tantos carros) para driblar o rodízio. O que quero dizer é que o trânsito é um problema que transcende o pacote de soluções viárias. Envolve questões de mentalidade, como apontei, e envolve questões como habitação, emprego e economia.

Enquanto no centro da cidade, onde está a grande maioria dos entroncamentos, dos nós no fluxo de pessoas, há um déficit de moradores, em regiões como a zona leste e a zona sul a cidade cresce sem parar, numa periferização aflitiva. As pessoas moram no extremo leste e trabalham no centro e na região oeste; viajam até quatro horas de casa para o trabalho e de volta, em ônibus e metrôs cada vez mais lotados. Como o Estado não constrói metrô no ritmo necessário e a Prefeitura não fornece ônibus em número suficiente (basta passar num ponto de corredor e ver quantas pessoas esperam e o quanto), cada ano há piora para lá de sensível. A marginal Tietê em direção à zona leste, por exemplo, é quase um estacionamento a céu aberto... Até nos fins de semana há trânsito, também porque serviços e lazer estão centralizados.

O mesmo vale para a região metropolitana. Cada vez mais pessoas moram nos arredores de São Paulo, em busca de paz, verde, etc. E cada vez mais elas enfrentam trânsito: todas as rodovias têm congestionamento nos últimos 20 ou 30 km até as marginais. Fiquei sabendo que uma construtora pretende dobrar a população de Caeiras, na via Anhangüera, que é, como se sabe, uma cidade dormitório. Essas pessoas não moram em São Paulo, mas transitam (ou tentam) por aqui. Isso também remete ao problema dos caminhões: boa parte da frota não tem São Paulo nem como origem nem como destino. Caminhão que sai do interior para o porto usa as marginais e algumas avenidas, incluindo acessos estreitos. Não conheço cidade no mundo que tenha tantos desses veículos grandes e poluidores em suas ruas.

Não dá para querer que as pessoas fiquem satisfeitas, ainda que nada justifique troca de agressões. O problema maior é que a perda da qualidade de vida, além de dar uma péssima idéia de progresso para o resto da nação, corrói as relações humanas de modos difíceis de mensurar, mas que são evidentes. Desde atrasos e cancelamentos cada vez mais freqüentes até os estragos à saúde causados pela irritação contínua, os danos vão muito além do desperdício de tempo. O que há é um desgaste de humanidade.

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