quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A salvação no hinduísmo


A salvação no hinduísmo

por Ernesto Arosio

mbora nos últimos anos, as religiões, especialmente as recém-fundadas, estejam assumindo um valor salvífico mais material “do aqui e do agora”, a essência das religiões foi – e ainda é – a resposta essencial à vida e ao depois da morte. No homem, encerram-se medos e esperanças, alienações e liberdade, solidão e amor, superações e contradições. Pode-se negar o além, mas, no âmago da consciência humana, existirá sempre o anseio de saber se existe algo depois da vida.


Vedas, os seculares livros sagrados do hinduísmo
As respostas aos enigmas da vida e do além tornam-se a finalidade das religiões e, conforme o tipo de salvação admitida, organiza-se a prática religiosa na vida terrena do fiel. As religiões oferecem os meios, os caminhos, os guias e os mediadores para se conseguir o status final. A salvação depois da morte pode ser entendida como uma libertação pessoal da vida terrena, de uma situação existencial provisória e passageira, ponto de chegada definitiva, como acontece no islã, no judaísmo e no cristianismo.

Pode ser considerada, como a liberação da história ou da existência individual, para se perder na divindade, como no hinduismo, no budismo, nas religiões orientais ou cósmicas. De qualquer maneira, percebe-se a busca incessante de felicidade que pode consistir na existência eterna, na anulação total ou no perder-se individualmente na divindade.

Salvação como libertação da angústia

O hinduísmo atual é a religião da salvação individual e do perder-se na divindade, embora em sua origem, a salvação fosse um pouco diferente. Nos Vedas, os seculares livros sagrados do hinduísmo, encontra-se o desejo de continuação da vida humana na morada dos deuses, onde os virtuosos e os justos gozariam da imortalidade num reino de luz, enquanto os malvados sofreriam os tomentos do inferno. Sucessivamente, foram se infiltrando os conceitos dos ciclos e épocas cósmicas que modificaram totalmente o conceito primitivo.

O célebre mito da Bramavaivarta Puruna relata Vishnu mostrando a Indra, o rei dos deuses, uma miríade de formigas que são as reencarnações que sofreu e sofre o mesmo Indra, ao longo dos ciclos cósmicos. “Quem contará o número dos universos, tendo cada qual seus Vishnu e Brahma?... os universos nascem e desaparecem indefinitivamente... os universos flutuam nas águas puras e sem fundo que forma o corpo de Vishnu”.


Peregrinos hindus banham-se às margens do rio Ganges, considerado sagrado pelos indianos
Neste turbilhão de nascimentos e renascimentos cósmicos, surge a idéia da transmigração das existências dos corpos em outros, através dos tempos cíclicos. Os seres humanos e divinos reencarnam-se numa seqüência de vidas (Samsara), dentro da lei inexorável do karma, que amarra, indissoluvelmente, todo o peso dos atos realizados nas vidas anteriores e o transmite às vidas posteriores, até seu desaparecimento na divindade como forma de purificação.

O ciclo dos milênios

Atualmente, estaríamos na idade de Kali-Kaliyuga que, por sua vez, foi precedida por três ciclos de yuga (idade): o Dvaparayuga, o Tretayuga e o Kritayuga, épocas felizes da humanidade. Essas quatro idades ou yugas formarão a grande idade de 4.321 milhões de anos, ao término da qual, Brahma, o criador, descansará, provocando uma dissolução cósmica. Ao seu despertar, o processo recomeçará e assim até o infinito.


Montados no touro, a deusa Parvati e o deus Shiva
Nesses ciclos de nascimentos e renascimentos cósmicos que acontecem de um corpo ao outro, concentra-se a angústia dos hindus e o desejo de fugir desses ciclos que, praticamente, fundamentam a vida religiosa seja dos eruditos mestres, dos gurus como do povo. A aspiração de se livrar destes ciclos infinitos e doloridos é o componente mais importante do hinduísmo.

A condição humana

As escrituras sagradas do hinduísmo – Upanishad e Bhagavad-Gita – apontam as raízes da condição humana na ignorância, no desejo, no egoísmo. De tudo isto, brota um agir – karma – cheio de egoísmos e de paixões que proíbem ou retardam a chegada ao Brahma e seu aniquilamento nela. “A árvore do desejo nasce no coração da confusão mental; a ignorância é a sua raiz, a ira e o orgulho são o tronco e o fruto provém das ações realizadas nas vidas passadas”.


Indra, o rei dos deuses
A solução, portanto, estaria na renúncia radical de todos os desejos que levam a essas ações más. “O homem, que está dominado pelas paixões, – diz o livro da Upanishad – por causa das ações, pode alcançar a finalidade de sua mente. Quando esgotou o efeito das obras que fez aqui, do outro mundo volta a esta terra para continuar a agir. Isso para quem é dominado pelos desejos. Mas, para quem está livre de desejos, quem já apagou seus desejos... ele já é brahma e se reúne com Brahma”.

Isso explica por que os cadáveres dos sadus, que já conseguiram chegar a esse estado de libertação, não são cremados, mas simplesmente abandonados às águas do rio Ganges e de outros rios sagrados. O invólucro dos seus corpos não é mais necessário, porque já se auto-identificaram com a realidade profunda de Brahma que é o termo final da salvação: “Quando todos os desejos do coração foram anulados, então o mortal se torna imortal e goza no Brahma.

Como a serpente que perde a pele morta, assim este corpo; permanece, porém, o espírito incorpóreo, imortal, puro Brahma, pura luz...”. Tornar-se Brahma significa tornar-se um ser puro e atingir a suprema felicidade de perder-se na divindade. Esse encontro com Brahma tem diferentes interpretações, conforme os mestres hindus: para alguns é chegar aos pés do Brahma, para outros a salvação é comparada ao amor dos esposos, para outros ainda é um aniquilamento na divindade.

Aliás, para alguns místicos, isso deveria acontecer já durante a vida e a interpretação dessa chegada final é o que diferencia os grandes caminhos místicos do hinduísmo: o do conhecimento, o das obras e o da dedicação amorosa. “Qualquer coisa que vocês façam – comer, sacrificar, dar uma esmola – ou qualquer sofrimento aceito, ofereçam tudo a mim... Trabalhem para mim, me amem lealmente, abandonem qualquer outro afeto, não cultivem ódio, porque todos os que assim agem, chegarão até mim” diz Krishna. Importante para a salvação, portanto, é não ter ou cultivar o egoísmo.

Os mediadores e os meios da salvação

Além do esforço pessoal e da ajuda divina, o hindu que busca a salvação pode contar com outros meios e mediadores como o avatar, o guru e o mantra. O avatar é a encarnação da realidade última – divindade – que se manifesta em forma humana, mas pode aparecer também sob a forma de outros seres, como nos animais sagrados, e desce à terra, quando há algum desvio ético, como está escrito na Bhagavad-Gita: “Eu sou imutável não gerado... Todavia, pela minha energia criativa, me associo à natureza que é minha e venho existir no tempo...

Todas as vezes que a lei da justiça é instável e triunfa a ilegalidade, então eu me encarno aqui na terra”. O guru é um componente importante na via da salvação, é o guia indispensável de quem procura encurtar os ciclos cósmicos. Verdadeiro mestre de espiritualidade com autoridade absoluta para seus seguidores, é o guru que escolhe para o seu discípulo a divindade a ser venerada, a meditação a ser feita, a invocação ou mantra, fórmula sagrada, cuja meditação e repetição freqüente facilita o encontro com o divino e com a salvação.

Ele pode receber, ainda em vida, honrarias e apelativos divinos de seus discípulos. O mantra, instrumento indispensável no caminho da salvação, é a repetição e a meditação de frases místicas que interligam profundamente o humano ao divino. O hinduísmo insiste também na importância da vida moral ensinada pelos mestres espirituais. Os pontos mais importantes dessa moral hindu podem ser resumidos em: domínio de si mesmo, compaixão pelos outros, pessoas ou animais, e a esmola.

No Bhramasutra, encontram-se outros conselhos, como a renúncia das coisas não reais deste mundo, uma nítida separação intelectual entre o eterno e o humano transitório, a prática das virtudes e o desejo intenso da salvação.

Ashram e devoção popular

Os preceitos da salvação são praticados, sobretudo, entre as classes religiosamente mais preparadas e no ashram, centro de espiritualidade que se forma ao redor de um guru. Às vezes, esses princípios são polêmicos, privilegiando a espiritualidade dos gurus e de seus discípulos. O povo, longe das discussões místicas, procura sua salvação nos templos, nos rios sagrados, nas romarias aos santuários das divindades mais populares, com orações, votos, na purificação das culpas, por meio de autopunições e penitências, numa mistura de ingenuidade e espontaneidade, criando práticas espirituais pessoais que desembocam numa magia de cores que são as da Índia.

O objetivo dos peregrinos hindus é o banho na confluência do rio Ganges e Yamuna: para eles, isso lava as culpas das pessoas, compensando até uma vida inteira de comportamentos pecaminosos e oferece a chance de uma existência mais nobre e em melhores condições na próxima reencarnação. É verdade que, todos os dias do ano, chegam peregrinos para se banharem nas águas dos rios sagrados e que para muitos, em qualquer dia, se consegue a purificação desejada.

Contudo, segundo alguns hindus ortodoxos, fazer isso no tempo do Kumbh Mela e no dia da lua nova, dá maior garantia de ter suas culpas lavadas e até pode garantir a salvação total, isto é, a liberdade de novas reencarnações depois da morte. Kumbh Mela é a maior das peregrinações indianas e a maior reunião de pessoas que uma confissão religiosa jamais conseguiu realizar no mundo inteiro. Milhões de peregrinos de todos os rincões da Índia e até do exterior, falando diferentes línguas, dos mais variados costumes e culturas, encontram-se para o santo mergulho nos rios sagrados.

(Alberto Garuti)

www.pime.org.br

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